sábado, junho 16, 2007

Pra quem gosta de cinema

Resolvi publicar aqui a entrevista feita com a Andréa Melo.Espero que dê pra saborar uma época louca e significativa, revolucionária no que se refere a filosofia e a prática do cinema na história cultural do Brasil de ontem e de hoje.
Na entrevista, foi discutido a importância de se fazer cinema no Brasil, as influências de movimentos que colaboraram para o seu atual crescimento e desenvolvimento no presente e futuro, sua função social e política bem com em seu espaço no mercado hoje no Brasil.


Eiko: Quem faz Cinema hoje no Brasil?

Andréa Melo : Acredito que faz Cinema hoje qualquer pessoa, grupo ou cidade que disponha desde uma câmera amadora até aqueles com material de produção satisfatório para desenvolver um projeto profissional. Depois que os programas de edição e pós-produção se tornaram compatíveis com os PCs domésticos, o grande diferencial mesmo agora é ser criativo, sabendo fazer bom uso das técnicas narrativas. Sim, porque tecnicamente tudo se tornou acessível, fácil de manuseio. Então, um indivíduo lá no interior de Minas Gerais, por exemplo, com sua câmera semi-profissional e um PC bem montado poderá “encher os olhos” dos espectadores “famintos” com narrativas lúdicas e poéticas acerca daquele universo tão sensível da barroca Gerais. Conheço uma série de cineastas fantásticos com produções de 3 a 5 minutos, filmes minimalistas, filmes experimentais (Karen Montenegro, hoje morando no RJ, só para citar um nome). Agora, no universo do “cinemão” do mercado cinematográfico nacional, assistimos uma emergência fantástica dos cinemas regionais, muitos chegando a se constituir em pólos de produção cinematográfica como Recife, Fortaleza e em fase de estruturação aqui mesmo em Natal.
Uma maravilhosa diversidade de narrativas e de maneiras de narrar. Olhares de muitos, de outros. Acredito que cinema deve ser feito assim, na multiplicidade.

Eiko: Que direção foi dada depois da era do Glauber Rocha, época do cinema considerada uma das mais importantes?Houve um divisor de águas entre antes e depois do Cinema Novo e quais impactos reais tiveram na intenção de fazer cinema no Brasil?

Andréa Melo : Depois de Glauber, veio a fase da crítica ácida ao próprio cinema intelectual para as minorias (leia-se, Cinema Novo). Veio o Cinema Marginal ou underground: Bressane, Sganrzela. Na seqüência, Mojica, Ivan Cardoso etc. Nos anos da ditadura, nosso cinema beira o pornográfico e o superficial, apesar de algumas tentativas criativas isoladas. Mas afinal não era mesmo obsceno o cenário brasileiro da opressão. Será que esse cinema apenas espelhou isso?! Mas foi só no início dos anos 1980, como Carlota Joaquina da valente Carla Camurati, que os brasileiros voltaram a ocupar assento nas salas de exibição do Brasil para ouvir suas histórias, contadas por sua própria gente. O divisor foi, sem dúvida, Carlota Joaquina, devemos isso a Camurati. A sensibilidade no tratamento e no contexto em que inseriu o filme. Depois de Camurati acreditou-se novamente ser possível fazer cinema nesse país e a não somente depender de entidades como a Embrafilme, porque o empresariado interno e externo também poderia ser um patrocinador.

Eiko: A revelia dos movimentos de cinéfilos, a nova direção em que estava sendo levado o cinema brasileiro contribuiu de certa forma para posteriores mudanças no tratamento que fora dado, política e economicamente, ao Cinema Brasileiro?

Andréa Melo : Sim, acredito que o cinema brasileiro se profissionalizou desde a elaboração do projeto de captação financeira, a produção e finalização. Fazia-se cinema emocionalmente sem levar em consideração as condições de mercado, sem prever os lucros e os prejuízos. Agora é diferente, não é à toa que a figura do produtor ganhou mais relevância que qualquer outro membro da equipe, ainda que o projeto não tenha saído da cabeça dele, mas cabe a ele a condução, a otimização e a conclusão satisfatória do que se desejou realizar desde o início.

Eiko: Quais as impressões deixadas pelos diretores e produtoras da década de 60, especialmente agora com tantas mudanças tecnológicas, tantos investimentos no cinema bem como a diversidade fílmica de hoje?

Andréa Melo : A impressão é de criatividade independente de tecnologias, liberdade de expressão acima de tudo e muita boa intenção, mas também de uma ineficácia quanto ao projeto político de conscientizar as minorias (ideal cinemanovista) e quanto ao retorno financeiro, em razão das produções muito intelectualizadas e com temática restritiva as metas de seus idealizadores.

Eiko: O Cinema Brasileiro parece ter conquistado seu espaço no mercado cinematográfico, assim temos visto pelo reconhecimento dos longas pelo mundo, dos atores e diretores estreitando a arte com o cerne cinematográfico que são os Estados Unidos. O que falta no cinema hoje sob o ponto de vista filosófico, atingindo logicamente sua função cultural e social no país?

Andréa Melo : Não concordo que os Estados Unidos seja o cerne cinematográfico. A não ser que seja do ponto de vista de sua indústria cinematográfica dominante. Muitas das melhores produções norte-americanas têm orçamento baixo. Seus diretores, aqueles autorais de fato, Brian de Palma, David Lynch, Spike Lee ou até Woody Allen nunca lançam “blockbusters”. O estreitamento do Brasil com os EUA, creio se deve, em primeiro lugar ao intercâmbio que se intensificou desde os anos 1995, entre as universidades dos dois países, por exemplo, a USP e Universidade de Nova Iorque (Ismail Xavier, Anette Kunh e Robert Stam). Esse intercâmbio resultou em uma política de exibição de filmes brasileiros em terras do Tio Sam, co-produções mais freqüentes etc. Falta ao nosso cinema, creio, um estilo marcadamente brasileiro com a responsabilidade de socializar conhecimentos, diversificar gêneros. Faz-se muita comédia nesse país. Já o drama e o documentário são pouco aceitos pela audiência.

Eiko: O documentário é de extrema importância para formação dos cineastas, embora não atraia muito público. Foi marcante para o cinema, filmes como Conterrâneos Velhos de Guerra, direção de Vladimir Carvalho e, Santo Forte de Eduardo Coutinho. Como se acentua nesse gênero problemas e situações que são apresentados de modo aberto, sem máscaras, o que acontece na falta de exibição e distribuição dos documentários é o desacostume somente do gênero ou a incompreensão da importância desse trabalho principalmente no meio acadêmico quanto a falta de incentivo de instituições em auxiliar o aluno com suporte para tal prática?

Andréa Melo : Creio que muitos documentários brasileiros são mesmo chatos para o espectador. A maioria dos documentaristas não tem autocrítica e é individualista. Despejam nos olhos e ouvidos da audiência longos depoimentos, repetem-se, são circulares e não espirais. Poucos são lúdicos, têm medo de ferir a realidade, por acreditarem que ela é passível de ser retratada pelo documentarismo, quando este, na verdade, é mais uma forma de encená-la. Não me refiro a Massagão, nem tampouco a Salles, mas principalmente aos documentaristas “encerrados” em suas regiões e costumes, refiro-me ao documentarismo nordestino e sulista, por exemplo. O gênero pode ser extremamente criativo e atraente, desde que se evitem os preconceitos existentes. Acho que o documentário é tão importante quanto qualquer outro gênero, o que interessa é a qualidade dele, a narrativa e o ato de narrar. Você pode ter uma comédia muito mais eficiente do ponto de vista da conscientização do espectador do que um documentário. É preciso que esse, seja inteligente e atraente, reflexivo e liberto, as mais diversas conclusões do espectador e não aprisionado aos conceitos estabelecido pelo realizador.

Eiko: A nova fase do Cinema no Brasil, ou “a retomada” como chama Pedro Butcher, crítico de cinema, é considerada depois de filmes como Cidade de Deus e Central do Brasil. As razões para se filmar aqui, além do apoio do governo e empresas que colaboram com a cultura no país, estão nas mazelas sociais que continuam dando dinheiro nas telonas. Essa é uma decisão estética ou ainda não se confiam em outros temas a atingir semelhante resultado no país?

Andréa Melo : Acredito que Cidade de Deus também é um marco, mas dessa vez um marco no modo de narrar a partir de um approach tecnológico. Não se ousava no Brasil narrar dessa forma, apesar de que muito do que se vê nesse filme, se encontra no cinema soviético de Pudovkin, Vertov, e Eisenstein do início do século XX. Já Central é um melodrama, mix de roadmovie e novela das oito, mas extremamente eficiente no panorama cinematográfico norte-americano. Creio, respondendo mais diretamente sua questão, que é menos uma razão estética e mais uma subliminar intenção política. Lembro de Carmen Miranda, em Serenata Tropical (se não me engano), cuja performance musical para o mercado cinematográfico norte-americano exigia uma representação uniformidade cultural: turbante com cachos de frutas na cabeça e tango era uma coisa só. Portanto, a estética pode se colocar a serviço de interesses maiores. Durante o Cinema Novo, Walter Hugo Khouri fazia um cinema que se diferenciava da “estética da fome”. Com um intimismo à moda bergmaniana, não deixou de falar, contudo da solidão, desespero e incomunicabilidade dos brasileiros dos anos 1960. Muitas outras temáticas estão sendo abordadas, basta circular nos festivais alternativos de cinema e vídeo do país.

Eiko : Há cineastas novos com idéias também novas hoje no circuito cinematográfico. Vimos então a possibilidade do Brasil continuar fazendo cinema de qualidade com uma formação e motivação diferente dos filmes que temos assistido. Há de surgir movimentos em que a beleza e outros temas continuem a preencher os anseios da sociedade e produzir mais encantamento do que extasiamento social?

Andréa Melo : Há de surgir cinematografias, autorias, mas também muita baboseira. Muitos cineastas brasileiros fazem cinema como fazem televisão. Temem ousar esteticamente, como o Walter Salles, por exemplo, temem o rechaço da platéia. E acredito, devem temer mesmo. Não sei se acredito nesse cinema que “preencha os anseios da sociedade”, como desejavam os soviéticos, que atenda um projeto coletivo... Acho que ele preenche os anseios de um ou mais sujeitos (roteirista, diretor, ator) cuja permanência no mundo em que se vive gera conflitos, move desejos de falar sobre esse mundo sobre um olhar mais do que particular. Contudo, esse olhar, às vezes coincide com o olhar de outras pessoas. Mas será sempre o jeito de olhar de poucos sobre o mundo em que muitos habitam. Também não sei se só de beleza e encantamento devemos viver. Existe o belo no escatológico, veja Greenaway para mostrar isso. E no Brasil, o média-metragem, Útero para reforçar. Creio que o fazer do cinema deve fugir das polaridades, dos extremos e buscar o diálogo audiovisual, no sentido bakhtiniano do termo, ou seja, fazer conviver vozes contrárias, estéticas e estilos, de hoje e de ontem, de forma complementar e dinâmica.


Andréa Mota Bezerra de Melo é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação, com ênfase em Cinema, Rádio e Televisão pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Professora de Cinema para Cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda.


Entrevista realizada no dia 08 de maio de 2007.